Os Natais, as entranhas e os perus
Os Natais, as entranhas e os perus
Eram dez para meia noite e todos naquela casa ainda estavam acordados, aguardando pelo momento da ceia ansiosos, ao contrário dos que estavam em outras habitações onde haviam crianças e idosos famintos e que não podiam esperar. Aquele lar que aguardava estava todo enfeitado, cheiroso com o perfume de comida e afeto, exalando por portas, janelas e frestas o pretenso amor que aguarda a hora certa, a hora marcada de ser libertado, mais até do que foi no ano passado e ainda menos do que será no que se aproxima.
Este nosso lar fica ao pé de uma ladeira do Rio de Janeiro, como tantas outras, mas ao contrário de muitas, está num bairro nobre onde a mesa era cheia e uma tinha árvore grande decorada. E na árvore tinham presentes, e os presentes eram embrulhados com papel que refletia nas lâmpadas de pisca-pisca e no peru besuntado de manteiga de receita especial.
Quando faltavam apenas cinco minutos para a ceia, a pequena Lalinha correu e pôs-se de joelhos no sofá, os olhos fixos na janela aberta, brilhando, e o pai atrás, sempre preocupado em desfazer as ilusões da vida ordinária na menina, que já ia se aproximando, e quando tomou impulso da fala de quem corta a dor na raiz foi cortado quando Lalinha gritou:
-Papai, você estava certo. É mesmo mentira! Ele é mais magrinho do que disseram e não tem barba, mas existe mesmo.
O pai, preocupado com algum devaneio de menina, de prontidão estava agora ao seu lado, olhos mais abertos que os da menina, esperançosos. Era quase meia-noite e lá do alto da ladeira vinha um homem negro e magro e camisa vermelha, sem barba tal e qual Lalinha havia visto. Ele usava shorts e chinelos e parecia a vontade com o caminhar de ladeira. O pai esfregou os olhos e abriu de novo para confirma aquilo que via. Nas mãos daquele homem, que ainda não sabemos se era pai ou não, ao invés de presentes e sacos, havia uma arma grande e lustrosa que de perto reluzia a cor das janelas das casas vizinhas, como aquelas lampadazinhas que brilhavam no papel de presente de dentro da nossa. Ainda faltava pouco para meia noite e o homem parecia sozinho, já chegando a metade da ladeira onda a casinha ficava aos pés.
Lalinha não sabia, e o pai também não, mas naquele momento aquele homem estava em muitos outros cantos da cidade, como se fosse mesmo um Papai Noel, subindo outras ladeiras, descendo algumas tantas, ou em linha reta das ruas tortas da cidade como se não fosse aquela uma noite de Natal. Estavam todos espalhados, como se também esperassem pelo momento certo e a hora marcada de liberar algo. Era como se fosse o mesmo homem caminhando pela rua, mas eram todos vários, alguns descalços, outros de chinelo e muitos descamisados, mas todos de vermelho nos olhos e armas em punho. E pais, como o nosso, observavam atentos ou ceavam, ou diziam hou hou hou, ou colocavam crianças mais cansadas que Lalinha cuidadosamente para deitar. Pais como esses que se esbarrassem nos outros achariam que eram todos o mesmo sem família que vaga sozinho pelas ladeiras da vida enquanto os homens de bem ceiam com suas famílias, colocam presentes escondidos nas árvores ou carregam para a cama as crianças que dormem cedo.
Então, quando quase deu meia noite e já quase se ouvia o galo é que Lalinha tirou a atenção do pai, fixa no rosto do homem que ali vinha pelo meio da rua da nossa casa, nesse roubo de atenção Lalinha apontou e mostrou o início.
Agora sabe-se que o homem que descia talvez não fosse mesmo de bem, mas não estava sozinho na noite de natal e, se fosse outro o caso, não estariam ele e os seus armados até os dentes. Atrás dele desciam a ladeira numa multidão gente de várias cores, todos mal vestidos e cara de desnutridos, muito diferentes entre si, mas assim como o homem tinham os olhos vermelhos e armas em punho, e não seria um mau palpite arriscar que era tudo por conta da fome.
Nessa multidão tinham famílias, quer dos homens que vinham mais para frente da ladeira quer de outros homens que se perdiam no meio da multidão.