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Carcaças ao sol

 

 

 

A pesada carcaça castigada pelo sol mostrava as costelas já cansadas e se assemelharia a do companheiro se não fosse o brilho de suor na pele exausta por aquele tempo quente, caberia dizer até que era um tempo um tanto cruel. Se assemelharia mais ainda ao animal se os tivéssemos comparado há algum tempo atrás, quando ainda não eram companheiros e o ar atrasadamente rural que esse bicho carregava era atenuado pelo comum desse tipo de coisas que acontecem e passam já desapercebidas por nossos olhos apertados pela claridade aqui, na capital, na sensibilidade da luz que vem de uma manhã de céu descoberto, como a de hoje. Mas não presenciamos esses tempos antigos, e nem mesmo ele se lembrava mais dos seus antigos tempos de quando ainda era ele burro sem rabo, a não ser quando admirava aquele seu companheiro a balançar o elemento que sempre foi ausente em si para espantar eventuais moscas que vira e mexe pousavam bem na sua testa. Iam ambos com uma coragem absurda frente à fervorosa cidade seca, quente e iluminada, um homem e um burro a suar e puxar sua carroça. 

Esse e aquele iam corajosamente sustentando sob o sol, agindo agressivamente, revelando aquela rural brutalidade aos olhos dos que passavam. Os olhos, apertados pela sensibilidade, reparavam ali na carroça aquele acúmulo de histórias, deixadas no passado, que estavam sendo levadas para bem longe da modernidade vestida pelos tempos atuais. Aquilo tudo destoava. Cena grotesca em plena Copacabana eram aquelas carcaças, carroça e cacarecos por entre os modernos carros, que pareciam brilhar mais que nunca ali, bem ao lado desses dois. Não brilhavam mais que aquela pele, que quando ainda era só parecia nem brilhar, oculta, como já dito, na ordem comum assumida pelas coisas do nosso cotidiano já acostumado.

Esse e aquele iam corajosamente, ambos sem sequer imaginar a valiosa idade daquilo que levavam com tanto esforço para longe, os valiosos restos, e não imaginaria jamais se não tivesse crescido aquela moça, se não tivesse ela enjoado da opacidade da boneca. Ela, agora já crescida, depositaria a antiga companheira no depósito do prédio. Se não tivesse o porteiro orgulhoso colocado a pequena boneca não junto a cama da filha, mas  junto aos cacarecos dos odiosos moradores ali na calçada, se não tivessem os companheiros reconfortado a pequenina desumanidade do brinquedo ali, não imaginaria se não o tivesse visto, não imaginaria, mas vi, e foi quando tomei consciência.

E então , quando vi todo aquele incomodo acúmulo saltando e agredindo aos olhos, foi nesse momento que tomei consciência de que toda história nada mais é que um acúmulo de uma sucessão de acasos, acasos que viram fatos ad eternum. Pelo menos assim me parece, assim me pareceu. Apareceu e pareceu que se constrói o homem de acasos, do acúmulo deles, afinal um homem é aquilo que fez. Então ai que se encontra o maior de todos os erros: o homem tende a procurar uma tal estabilidade, uma certeza nas coisas. Tolice, meu caro, tolice. Acaso não percebe que é puro acúmulo e acaso da cabeça aos pés. Diga-me por onde andou que te direi um quem tu és,  e receioso. E assim, passo a passo, pé ante pé que como a bailarina atravessa belissimamente a corda bamba e esquece toda a certeza e a perfeição dos gestos para equilibrar-se na incerteza do chão ou não chão, do ser ou não ser, é assim que devíamos seguir, nós nas nossas magras carcaças a brilhar de suor ao sol atravessando Copacabana entre os carros. Isso e nada mais.

Se tivessem nascido puro sangue, se tivessem, jamais teria visto. Jamais teria ele visto a dor se esvair no conforto do companheiro. Se tivessem nascido puro sangue todos aqueles acúmulos teriam se perdido, não seriam companheiros, não seriam. Mas foi o acaso, o acaso os fez quem são e é por isso, e só por isso, que seguem eles agressivamente a carregar aquelas carcaças expostas aos nossos olhos, em pleno sol.